Por Antonia Beatriz Pires • Real Seguro Viagem em 14/10/25 às 08:58.
Turismo Étnico-Afro: minha experiência Quilombola em Visconde do Rio Branco
Há experiências que transcendem o conceito tradicional de turismo. Elas não cabem em roteiros padronizados nem em selfies apressadas. São vivências que nos atravessam, que nos devolvem pedaços de nós mesmos que nem sabíamos estar procurando. Foi exatamente isso que vivi ao participar de uma experiência quilombola no Quilombo Comunidade Remanescente Quilombola Bom Jardim, localizado na zona rural de Visconde do Rio Branco, Minas Gerais, a poucos minutos de Viçosa.
Troca de saberes no Quilombo bom Jardim (Arquivo Pessoal)
O que são Quilombos?
Antes de contar minha experiência, é importante entendermos o que são quilombos. De acordo com o antropólogo Kabengele Munanga, quilombo é uma palavra originária dos povos de língua bantu (kilombo). No Brasil, os quilombos foram territórios de resistência criados por pessoas escravizadas que fugiam das senzalas e plantações, ocupando áreas de difícil acesso. Ali, organizavam-se em comunidade, recriando estruturas sociais e políticas baseadas em seus saberes ancestrais africanos.
Segundo o Censo de 2022,o Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas distribuídos em 1.696 municípios. Muitas dessas comunidades ainda lutam pelo direito ao território, ao trabalho digno e à preservação de sua cultura. O turismo étnico-afro, também chamado de turismo de base comunitária em quilombos, tem sido uma das formas que essas comunidades encontraram para gerar renda, promover a valorização cultural e garantir a transmissão de saberes ancestrais para as novas gerações.
Troca de saberes no Quilombo bom Jardim (Arquivo Pessoal)
O que é Turismo Étnico-Afro?
O turismo étnico-afro é uma modalidade de turismo focada na valorização e preservação da cultura e identidade negras. Diferente do turismo convencional, aqui são os próprios moradores das comunidades quilombolas que protagonizam toda a experiência, decidindo o que mostrar, como receber os visitantes e como compartilhar sua história.
É um modelo que gera renda diretamente para as famílias, preserva tradições, fortalece a identidade cultural e permite que essas comunidades contem suas próprias histórias, sem intermediários que folclorizem ou explorem seus saberes.
Minha conexão com a experiência Quilombola
Venho de uma comunidade em São Paulo chamada União de Vila Nova. É daqueles lugares onde todo mundo se conhece, onde as pessoas sentam nas ruas, sabem onde mora quem, se reconhecem. Cresci assim, embalada por essa rede de afetos e pertencimento. Quando cheguei em Viçosa para estudar, encontrei ecos dessa vivência em algumas pessoas, em alguns gestos, em algumas formas de estar no mundo.
Depois de formada e da escrita do meu TCC, "Um caminho de volta pra mim", um trabalho de reconexão com minhas raízes e ancestralidade, foi quase automático me ver inserida entre pessoas que me fizeram reviver essas memórias. Por isso, quando recebi o convite para participar do II Encontro das Mulheres Quilombolas no Quilombo Bom Jardim, soube que seria uma experiência especial.
Defesa de TCC na Universidade Federal de Viçosa (Imagem: arquivo pessoal)
II Encontro das Mulheres Quilombolas: organização e acolhimento
O II Encontro das Mulheres Quilombolas foi proposto pela Rede SAPOQUI (Saberes e Poderes Quilombolas), uma articulação que reúne lideranças quilombolas da região. A coordenação ficou por conta de Carina Aparecida Veridiano, do Quilombo Buieié, junto com Liliane Laine e Julius Keniata.
Iscah, liderança quilombola do Quilombo Bom Jardim, foi quem abriu as portas da comunidade para nos receber. O encontro aconteceu no dia 23 de agosto, exatamente no dia do meu aniversário, quando completei 28 anos. E pasmem: caiu num sábado, assim como meu nascimento em 23 de agosto de 1997. Toda essa sincronicidade tornou a experiência ainda mais simbólica.
Ao chegar ao quilombo, fomos recepcionadas com um verdadeiro banquete de café da manhã, preparado com muito carinho por Sebastiana, anfitriã e moradora local, por outras mulheres incríveis e pelos homens que estavam ali para servir enquanto as mulheres seriam ministradas e cuidadas. Esse gesto simples já demonstrava a filosofia do turismo de base comunitária: cuidado, partilha e valorização.
Recepção afetuosa no Quilombo Bom Jardim (imagem: Instagram/Quilombo Bom Jardim)
Saberes que nascem do chão: oficinas e vivências
O primeiro dia foi conduzido por Ana Carolina Santos Silva, educadora quilombola, militante das mulheres negras e uma mulher que carrega duas identidades: quilombola e indígena Puri. Ela iniciou com uma oficina sobre identidade quilombola, destacando a importância de reconhecermos e retomarmos nossa ancestralidade. Uma frase sua ecoou durante todo o encontro:
"Um povo que conhece sua história é um povo que sabe para onde está indo, sem se desviar do seu foco".
A identidade foi reafirmada ali como ferramenta de empoderamento, de resistência às opressões e de efetivação de direitos, conceitos fundamentais para entender a força da cultura quilombola no Brasil.
Na sequência, Julius Keniata e Liliane Laine conduziram a oficina sobre educação escolar quilombola, ressaltando a relevância dessa modalidade de ensino para que as crianças cresçam empoderadas, valorizando seus ancestrais e sua cultura. Foi enfatizada também a importância de conhecer as políticas públicas para reivindicar direitos conquistados, não favores.
Cultura como resistência:
As apresentações culturais trouxeram emoção e força política à experiência quilombola. O Coral Resgate do Canto, do Quilombo Colônia do Paiol, emocionou a todos ao recuperar antigas cantigas de roda que resistem ao apagamento no mundo moderno. Cada cantiga era um pedaço de memória sendo resgatado, uma forma de resistência cultural contra o esquecimento.
O Grupo Fênix, do Quilombo Gesteira, trouxe a força da luta quilombola por reparação diante do crime do rompimento da barragemum, a ferida ainda aberta, cuja reparação até hoje não foi garantida. Mulheres quilombolas mostraram, em suas performances, a importância de ensinar desde cedo às crianças o valor da própria história e da luta por seus direitos.
ll encontro de Mulheres Quilombolas (Imagem: instagram/Quilombo Bom Jardim)
Por que escolher o Turismo Étnico-Afro?
Foram dois dias de encontros imersos na cultura dos nossos ancestrais. Experimentamos da culinária quilombola, aprendemos sobre o poder das ervas medicinais, ouvimos cantigas tradicionais e compreendemos a importância da preservação da memória coletiva. O conhecimento, primeiro, nasce do chão.
O turismo étnico-afro se diferencia do turismo convencional porque:
Beneficia diretamente a comunidade: A renda gerada fica com as famílias locais, fortalecendo a economia do território quilombola.
Preserva a cultura: Não há folclorização. As tradições são compartilhadas com respeito, autenticidade e protagonismo das próprias comunidades.
Promove educação e conscientização: Viajantes aprendem sobre história, cultura e realidades sociais que geralmente não aparecem nos roteiros tradicionais ou nos livros de história contados pela perspectiva do colonizador.
Gera troca genuína: Não é uma relação de consumo superficial, mas de aprendizado mútuo e conexão humana profunda.
Fortalece identidades: As comunidades se veem valorizadas e reconhecem a importância dos seus saberes epistêmicos, dos seus conhecimentos ancestrais.
Experiência Quilombola: um reencontro
A interação foi única, mas familiar. No que vivi no quilombo, reconheci que os saberes da minha mãe também são epistêmicos, também são válidos, também são ciência. Me vi integrada àquela comunidade, não como visitante externa, mas como alguém que retornava a um lugar que sempre existiu dentro de mim.
Essa é a potência do turismo étnico-afro em territórios quilombolas: ele não nos torna apenas espectadores, mas participantes de um processo de resgate, valorização e perpetuação de culturas ancestrais. Ele nos devolve a nós mesmos. Nos reconecta com raízes que muitas vezes foram apagadas pela violência do racismo estrutural e pela narrativa única do colonizador.
Como planejar sua experiência em Quilombos
Se você ficou interessado em vivenciar o turismo étnico-afro em quilombos, algumas dicas importantes:
Pesquise comunidades que recebem visitantes: Nem todos os quilombos têm estrutura para turismo ou desejam receber visitantes. Respeite essa escolha e a autonomia das comunidades.
Entre em contato direto: Sempre que possível, converse diretamente com lideranças da comunidade para agendar sua visita. Isso garante que o benefício financeiro chegue até elas.
Vá com mente aberta: Essa não é uma experiência de consumo rápido, mas de aprendizado, escuta e troca genuína.
Respeite as regras locais: Cada comunidade tem suas próprias normas, tradições e espaços sagrados. Siga-as com atenção e respeito.
Valorize os produtos locais: Compre artesanato, alimentos e outros produtos oferecidos pela comunidade. Isso garante renda direta para as famílias.
Dê preferência a guias e agências negras: No caso de roteiros de turismo étnico-afro, é fundamental escutarmos a história a partir da perspectiva de profissionais e guias negros que se conectam com aquela cultura e ancestralidade.
Considere um seguro viagem: Mesmo em viagens nacionais, imprevistos podem acontecer. Um seguro viagem garante assistência médica e outros suportes caso você precise durante sua experiência.
Turismo que transforma e reconecta
Saí de Bom Jardim com o coração cheio, a alma alimentada e uma certeza profunda: experiências como essa não deveriam ser raras, mas sim parte da nossa forma de nos relacionar com o mundo. O turismo étnico-afro nos ensina que viajar pode ser muito mais do que conhecer lugares novos, pode ser um ato de cura coletiva, de resgate de memórias apagadas, de valorização de vidas e saberes historicamente subalternizados.
Durante séculos, a história do povo negro no Brasil foi contada apenas pela perspectiva do colonizador. Os quilombos foram retratados como lugares de fuga e esconderijo, quando na verdade sempre foram, e continuam sendo, espaços de organização política, resistência cultural e reconstrução de identidades. São territórios onde o conhecimento ancestral é preservado, onde crianças aprendem com seus mais velhos, onde a memória pulsa viva em cada cantiga, em cada prato de comida, em cada história compartilhada.
Quando escolhemos visitar quilombos através do turismo de base comunitária, estamos fazendo uma escolha política. Estamos dizendo que queremos conhecer o Brasil a partir de quem o construiu, e não apenas daqueles que o colonizaram. Estamos optando por experiências que geram renda direta para quem mais precisa, que fortalecem identidades, que combatem o apagamento cultural. Estamos construindo pontes onde antes só havia muros.
Completar 28 anos em um sábado, cercada de mulheres quilombolas, aprendendo sobre ancestralidade e resistência, foi um dos maiores presentes que a vida poderia me dar. Essa experiência quilombola me mostrou que o turismo étnico-afro não é apenas uma modalidade de turismo, é uma forma de reconexão com nossas raízes, nossas histórias e nossa humanidade.